Prezado leitor do Blog Gleison Elias, com o objetivo de suscitar reflexões profundas sobre temas da Bíblia Sagrada, posto abaixo parte de um interessante debate sobre um assunto de extrema relevância para todo cristão - A Soberania de Deus. O presente texto foi traduzido por Paulo Cesar Antunes, administrador do portal Arminianismo.com e postado aqui com a devida autorização do mesmo. Tenha uma boa leitura! 


Douglas Wilson & Jack Cottrell

O livro de Romanos, entre outras partes da Escritura, nos ensina muito sobre as bênçãos do controle soberano de Deus, mas os cristãos muitas vezes têm discordado em aspectos importantes sobre este tema bíblico central.

No seguinte diálogo, o editor da Credenda/Agenda, Douglas Wilson e Jack Cottrell, Professor de Teologia no Cincinnati Bible Seminary, discutem a questão da soberania de Deus. Jack Cottrell, Ph.D. Princeton Seminary, M.Div Westminster Theological Seminary, escreveu numerosos livros e artigos, incluindo discussões da soberania de Deus em seu livro sobre a providência, What the Bible Says About God the Ruler (College Press, 1985), e em Grace Unlimited e The Grace of God, The Will of Man (ambos editados por Clark Pinnock). Atualmente o Dr. Cottrell está escrevendo um comentário sobre o livro de Romanos.

Douglas Wilson aborda os pontos de debate da soberania de Deus de uma perspectiva reformada tradicional, e Jack Cottrell de uma perspectiva arminiana tradicional. Cada um diria que almeja apenas ser fiel à Escritura.

Douglas Wilson: Todos os cristãos reconhecem que Deus é soberano; todos gostamos muito do termo. Certamente nenhum cristão jamais iria querer afirmar que Deusnão é soberano. Mas o que isto significa? Os cristãos também concordam que o conceito envolve exatamente o que a Bíblia diz. Mas isto apenas coloca a questão um passo atrás. O que exatamente a Bíblia diz sobre o assunto? Para começar nossa discussão, eu gostaria de propor que há dois aspectos da soberania divina exigidos pela Escritura. O primeiro é que os decretos soberanos de Deus não são limitados por nada fora dele mesmo. O segundo é que Seus decretos são eficazes; eles cumprem exatamente o que Deus pretendeu no decreto.

Jack Cottrell: Exato, os decretos soberanos de Deus não são limitados por nada fora dele mesmo e são eficazes. Mas todas as obras de Deus não são decretos (Sua vontade decretiva). Pelo seu decreto ilimitado e eficaz de criar, Deus originou um universo que inclui pessoas com livre-arbítrio e forças impessoais (leis naturais), ambas as quais Ele permite agir dentro dos limites de Seu controle soberano. Ele mantém este controle mediante Sua onisciência (especialmente o pré-conhecimento) e onipotência, através da qual Ele pode impedir qualquer evento potencial que Ele dessa forma escolhe, ou permite que venha a acontecer (Sua vontade permissiva). A medida máxima da soberania de Deus é este controle soberano sobre Sua criação, não Sua causação de todo evento dentro dela por meio de decretos eficazes.

Douglas Wilson: Você diz que Deus permite o livre-arbítrio e a lei natural dentro dos limites do controle soberano de Deus. Mas quão frouxos são esses limites? Deus é como um pai que leva os filhos para brincar contanto que eles “permaneçam no quintal”? Ou Ele, através de Seu pré-conhecimento e onipotência, controla todos os movimentos das crianças no quintal? Se o primeiro, seria realmente adequado referirmos a isto como “controle absoluto”? Coisas indesejadas podem acontecer dentro do quintal. Mas se o último, então nosso debate não tem se transformado numa discussão reformada interna sobre o mecanismo de controle? Afinal de contas, qual é a diferença substancial entre causação e controle?

Jack Cottrell: A primeira analogia do quintal é deística e inaceitável. A segunda é melhor, mas “controle” é ambíguo. Dentro de um decreto eficaz, abrangente, Deus “controla” todos os movimentos planejando-os e causando-os. Esta conotação é inaceitável. Antes, Deus “controla” todas as coisas no sentido que Ele está no controle delas. Deus causa algumas coisas, para infalivelmente cumprir Seus propósitos. Mas na maioria dos casos Ele respeita a integridade de Sua própria escolha de criar criaturas com livre-arbítriopermitindo-os efetuarem até mesmo “coisas indesejadas” (Mt 23.37; 2Pe 3.9). Todavia, Ele ainda está no controle, visto que Ele pode soberanamente impedir um ato pretendido sempre que desejar (Lc 12.19-20; Tg 4.13-15). Esta diferença é realmente substancial.

Douglas Wilson: Ambos concordamos que Deus permite certas “coisas indesejadas” (Ef 4.30). Mas isto significa que também concordamos que Deus desejapermitir estas coisas indesejadas. Neste caso, estas coisas permitidas claramente não são coisas que Ele absolutamente não as desejou. Se Deus conhece todas as coisas que resultarão se Ele criar, e subseqüentemente cria, então este ato de criação revela umadecisão de que toda resultante ou eventos dependentes irão acontecer (Ef 1.11). Para ilustrar, se Ele decide que o avião cairá, então esta é também uma decisão de que os passageiros também irão cair. Discordamos apenas quanto a se chamamos isto um decreto. Mas seja qual for o nome que damos, Sua decisão soberana de criar predetermina tudo o que segue dela (Mt 10.29).

Jack Cottrell: O que você diz é verdadeiro somente se o pré-conhecimento total de Deus deste mundo específico precedeu Sua decisão de criá-lo. Entretanto, eu afirmo o oposto: a decisão de Deus de criar este mundo específico de seres com livre-arbítrio precedeu Seu pré-conhecimento dele (se lógica ou cronologicamente é irrelevante). Seu pré-conhecimento da história universal é real, mas é o resultado de Seu decreto de criar este universo específico. Desta forma, as escolhas humanas são verdadeiramente livres, embora Deus as conheça de antemão; mas isto não significa que Ele deseja cada escolha específica. O que Ele deseja é seres com livre-arbítrio, mesmo com o risco de que eles escolham o oposto de Seu desejo e plano para eles.

Douglas Wilson: Se o decreto de Deus foi de alguma forma anterior ao Seu pré-conhecimento, então Seu decreto foi cego – mas ainda assim um decreto determinativo. Se for afirmado que Deus determinou criar este universo específico antes que Ele soubessede alguma maneira o que aconteceria nele, então a resposta bíblica deve ser que isto é inteiramente inconsistente com o que a Escritura ensina sobre Sua santidade, justiça e sabedoria. Tendo cegamente determinado criar, segue que Deus poderia não desejar toda escolha específica que fazemos. É possível que Ele pudesse não desejar alguma escolha específica? Quando Deus abriu Seus olhos depois de Seu inalterável decreto de criar, Ele disse, “Ó, não!”? Isto é determinismo cego cristão?

Jack Cottrell: O decreto de Deus foi determinativo com referência à Sua decisão de criar um universo governado por leis naturais e que inclui pessoas com livre-arbítrio. Isto dificilmente é determinismo, que significaria que todo evento foi predeterminado por Deus. Nem tal decreto é cego considerando os eventos contingentes que resultariam destas leis e vontades, visto que em Sua onisciência Deus conhecia de antemão todas as possíveiscombinações dessas contingências. Deste modo Ele não foi pego de surpresa quando Seu pré-conhecimento Lhe mostrava o que de fato iria acontecer. Além disso, Ele pré-planejou o processo de redenção através de Cristo para lidar com a pior contingência se necessário. Este entendimento magnifica, antes que nega, a santidade, justiça e sabedoria divinas.

Douglas Wilson: Em outras palavras, você está dizendo que Deus considerou todos os universos possíveis com leis naturais e livre-arbítrio, digamos de A a Z. Tendo providenciado redes de segurança, Ele então fechou Seus olhos, e quando estava suficientemente escuro, Ele predeterminou aquele que aconteceria (digamos, M). Mas isto significa que a diferença entre nós não é se Deus predeterminou o universo, mas, antes, se Ele sabia o que estava fazendo quando o predeterminou. Me parece que este arranjo de universos possíveis, dos quais Deus aleatoriamente selecionou um, é um modelo bem distante das claras afirmações da Escritura. Servimos aquele “que faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade...” (Ef 1.11).

Jack Cottrell: Você está determinado a ver determinismo mesmo onde não existe. Em primeiro lugar, não confunda minha concepção com aquela denominada “conhecimento médio.” Embora Deus saiba todos os universos possíveis que poderia suceder de Sua decisão inicial de criar criaturas com livre-arbítrio, o universo que na verdade se desenvolve não é pré-selecionado (predeterminado) por Ele. A partir de Sua decisão de criar, Ele simplesmente pré-conhece aquele que irá se desenvolver, e trabalha Seus próprios propósitos salvadores dentro, através e fora dele. Em segundo lugar, Ef 1.11 não significa que Deus é a causa originadora (predeterminativa) de todo evento específico; antes, através de Seu pré-conhecimento e poder soberano Ele adapta todas as coisas em Seu propósito último para a criação (cf. Rm 8.28).

Douglas Wilson: Estou entendendo que você não está afirmando que Deus escolheu o universo M, sabendo na época que seria o universo M. Você está afirmando que Deus criou o universo M, não tendo certeza de que Sua ação resultaria no universo M. Como um jogador com grandes dados, Ele não sabia o que aconteceria – mas Ele sabia quais eram as possibilidades. Mas ainda tem que ser mostrado como a ignorância dos detalhes futuros de Sua parte preserva o ato criador de ser predeterminativo. Não obstante Sua ignorância, ainda é o lance do jogador que determina o resultado. Ao criar, Deus determinou o universo que existe; estamos discutindo se Ele o criou cega ou inteligentemente.

Jack Cottrell: A analogia dos dados é falsa, considerando que os dados são passivos e inertes e recebem todo seu movimento daquele que os arremessa. Criaturas com livre-arbítrio, entretanto, são seres pessoais que são capazes de criar suas próprias escolhas. O Criador certamente busca influenciar estas escolhas, mas Ele não as predetermina de alguma forma. Uma analogia mais próxima seria um casal que arrisca “criar” um filho. Uma vez feito, eles o influenciam tanto quanto podem, mas o filho no final das contas escolhe por si mesmo. Como com os pais, a decisão de Deus de criar seres com livre-arbítrio exigiu umrisco. Mas Deus imediatamente pré-conheceu sua conseqüência, e de antemão planejou como tecer os fios de Seu propósito redentor dentro da tapeçaria das decisões humanas pré-conhecidas.

Douglas Wilson: Se a analogia dos dados é falsa por tais razões, então o que podemos dizer da analogia bíblica do Oleiro e os vasos (Is 29.16; Jr 18.4-6)? Barro é passivo também. Sua analogia de possíveis pais “se arriscando” na verdade não faz jus ao caso. A fim de adequar seus atos anteriores, os pais teriam que determinar a quantidade de todas as crianças possíveis, determinar tudo que eles fariam com cada criança possível, determinar tudo que eles fariam para cada combinação possível de escolhas feitas por cada criança, conceber uma criança cegamente, e imediatamente saber o destino final daquela criança. Isto corresponde ao caso, mas também ilustra como Deus na criação predetermina “tudo que acontece.”

Jack Cottrell: Não se justifica pressionar minha analogia além do ponto único derisco. Sua penúltima sentença obviamente não se aplica aos pais, embora ela convenientemente resume o que eu tenho dito sobre Deus. Entretanto, sua última sentença não segue da precedente. As escolhas de uma criatura são suas. Deus não as predetermina; Ele reage a elas. A analogia do barro ilustra o Senhorio absoluto de Deus como Criador, e Seu soberano controle sobre povos e nações até mesmo quando eles consciente e ativamente se rebelam contra Ele (como em Is 29.16; 45.9; Rm 9.1-20). Seu ponto principal é mostrar o direito e capacidade de Deus de escolher, usar e rejeitar Israelcoletivamente, como uma nação, de acordo com Sua vontade e propósito.

Douglas Wilson: Você admitiu anteriormente que o “pré-conhecimento de Deus é o resultado de Seu decreto de criar este universo específico.” Nós então concordamos que Deus criou este universo específico. Isto significa que os subconjuntos deste universo específico foram criados por Deus. Deus não criaria dez maçãs sem criar a terceira. Assim, este universo específico é a soma de suas partes, incluindo nossas escolhas livres. Uma escolha livre acontecendo de outra forma significaria um outro universo específico. Ao criareste universo, Deus criou as escolhas que ele contém. Cegamente ou não, Ele o criou, e não nós mesmos. Concordamos que o determinismo implica que todo evento é predeterminado. Você ainda não explicou porque isto exclui sua posição.

Jack Cottrell: Pelo contrário, eu expliquei repetidas vezes, usando palavras simples. Sim, o determinismo implica que todo evento é predeterminado. Sim, Deus criou este universo específico. Mas “este universo específico” inclui criaturas com vontade genuinamente livres. Dessa forma alguns “subconjuntos” deste universo específico (isto é, eventos que resultam de escolhas livres) não são criados por Deus, mas num sentido real são criados pelas próprias criaturas. Dessa forma, todo evento neste universo específico nãoé predeterminado. Depois que Deus criou este universo específico, ele poderia ter se desenvolvido de incontáveis maneiras, dependendo das escolhas feitas pelas criaturas livres. Lamento que esta conversa não passou da fase das definições, mas enquanto você insistiu em me rotular de determinista, não tivemos nada substancial a discutir.

Douglas Wilson: Eu na verdade não compartilho de seu lamento; muitos assuntos debatidos, este inclusive, necessitam de muito trabalho na fase de definições. Você diz que depois que Deus criou este “universo específico, ele poderia ter se desenvolvido de incontáveis maneiras.” Mas eu achei que tínhamos concordado que ele poderia somente se desenvolver de uma maneira, conforme visto em Seu pré-conhecimento. Você concordou que depois que Deus cria, então Ele pré-conhece num tempo em que Ele era o único agente. Se o futuro não foi estabelecido, ele não poderia ser pré-conhecido. Se pré-conhecido, então ele foi estabelecido por Deus.

Finalmente, deixe-me dizer que foi um grande privilégio debater com um cristão gentil como você. Obrigado.

Tradução: Paulo Cesar Antunes